terça-feira, 30 de março de 2010

TAMBÉM ACONTECEU EM WOODSTOCK

Em 1969, Elliot Teichberg tinha vinte e poucos anos e ganhava a vida como designer de interiores em Nova Iorque. Pintava uns quadros de vez em quando e morava no Village, reduto de freaks, boêmios e artistas. Elli só estava preocupado em se manter para ajudar a salvar o negócio da família em White Lake, a pouco mais de uma hora dali.

Os pais de Elliot tocavam o El Monaco, hotel de veraneio caindo aos pedaços, que estava sendo pedido pelo banco porque os Teichberg não conseguiam pagar a hipoteca. Com a alta temporada do verão se aproximando, o El Monaco tinha sua última chance de pagar as dívidas e ficar com Jake, Sonia e Elliot. A filha mais velha já tinha desistido do negócio e da família.

A primeira das viradas de Taking Woodstock (Aconteceu em Woodstock) começa quando Elli volta a White Lake para ajudar os pais a reerguer o empreendimento. Mais jovem do que a maioria dos moradores da comunidade, sensível e bem informado, Elliot passa a presidir a câmara de comércio da cidade, estacionada na era Eisenhower.

Elli fica sabendo que a cidade vizinha de Catskills tinha negado a licença para a realização de um grande festival de música que traria Jimi Hendrix, Joan Baez, Janis Joplin e um monte de hippies cabeludos e indigestos para o local. Elli tinha uma licença desde quando promovia seus festivais ao ar livre na praça de White Lake, tocava seus próprios discos (Judy Garland entre eles) e promovia conjuntos que se destacavam nos concursos de talentos das escolas locais.

Na segunda virada do filme, Elliot liga para a organização do festival, oferece a licença e a propriedade da família pensando em salvar El Monaco, pagar a hipoteca e dar um pouco de tranqüilidade para Jake e Sonia, desfigurados em uma relação de 40 anos.

A fazenda dos Teichberg não agrada ao staff de executivos, contadores e hippies que desce de helicóptero na grama do El Monaco. Elli recorre à propriedade vizinha do seu companheiro na câmara de comércio, Max Yasgur - um enorme campo verde cercado de pequenas colinas que dava para um lago.

O festival seria realizado na fazenda de Max e poderia atrair “até 20 mil pessoas”. A temporada de verão para o hotel dos Teichberg foi reduzida à venda de ingressos, à hospedagem da equipe e de algumas daquelas “20 ou 40 mil pessoas”. A simples possibilidade de uso do El Monaco pela organização do festival foi pago com um saco de dinheiro, que liquidou a hipoteca no banco e libertou Elli, Jake e Sonia.

Só na terceira virada do filme o Woodstock Music & Art Fair, a Exposição Aquariana, com 3 Dias de Paz, Amor & Música começa a aparecer, embora você saiba o tempo todo que se trata de um filme sobre Woodstock. Mas não é um filme sobre Woodstock. A falsa idéia proposta pelo título afasta, pelo menos, duas gerações de um grande filme.

A primeira é a de marrentos entre 30 e 40 anos, loucos por alguma coisa que os faça voar (ainda que com os pés no chão), que não querem nem ouvir falar dos 60, hippies, bichos-grilos, paz e amor, dedos em V e toda essa baboseira associada a Woodstock. Falta-lhes a iniciativa, a ingenuidade e a perseverança de Elliot.

A segunda geração excluída do filme é a de quem tem entre 20 e 30 anos, que quase não ouviu falar do festival e não tem a menor idéia do que aconteceu em White Lake. Para eles, Woodstock e as Guerras Púnicas são a mesma coisa: uma referência distante e sem sentido.

O festival aconteceu, de fato, e está tudo lá. A contracultura, a psicodelia e a política. O som, as drogas e a viagem. A organização, desorganização e a mídia. A chuva, a lama, o lixo e a sujeira. Polícia, pequenos mafiosos e as reações da comunidade. O desbunde instantâneo e inesperado de quase todos, inclusive de Elliot. Os engarrafamentos gigantescos e o verão do amor no El Monaco. O segurança travesti e o operário gay. O amigo de Elli enlouquecido pelo Vietnã. Kombis pintadas, trailers, sexo, nudez e os banhos no lago da fazenda de Max. Os pedidos por mais banheiros e comida como banana para as pessoas não fazerem tanto cocô.

Elliot Teichberg é Elliot Tiber, autor de Taking Woodstock: a True Story of a Riot, a Concert, and a Life, que inspirou o roteiro de James Schamus e o filme do diretor Ang Lee e de Eric Gautier (diretor de fotografia). O filme é do ano passado, quando Woodstock completou 40 anos. O livro também saiu no Brasil, pela Best Seller, tradução de Mariana Lopes.

Catskills era Woodstock, onde seria realizado o festival. White Lake era Bethel, onde foi o festival. Em 1969, a fazenda de Max Yasgur (que era Max Yasgur) reuniu 400 mil pessoas um ano depois da conquista da lua pela missão Apollo e no auge da carnificina no Vietnã. Michael Lang era Michael Lang, o judeu hippie e rico que teve a idéia de fazer o festival.

É surpreendente que Ang Lee tenha feito esse filme em sua primeira empreitada hollywoodiana depois de Brokeback Mountain, que impressionou a Academia, público, crítica, e pelo qual recebeu o Oscar como melhor diretor em 2006. É como se ele estivesse fazendo um filme “independente” em Hollywood, tanto que foi solenemente desprezado nas premiações desse ano.

O livro e o roteiro são um achado – e a Academia, como as gerações mais jovens, não querem ouvir falar de Woodstock. O cast é perfeito e desconhecido - destaque para o comediante de TV Demetri Martin (Elli), Henry Goodman e Imelda Staunton (Jake e Sonia). A narrativa é fluente: câmera na mão, uma das inúmeras contribuições de Eric Gautier ao filme; planos-sequência; tela dividida (já utilizada por Gautier e Lee em “Hulk”); planos e contra-planos que definem - mais do que diálogos, olhares e perspectivas - sensações, alucinações e experiências em um evento histórico com pequenos milagres que não paravam de acontecer.

Mas a grande história de Ang Lee e Elliot Tiber não é a que eu escrevi aqui. Não conseguiria contar um filme como Aconteceu em Woodstock. Acho que ninguém conseguiria. E penso que bons filmes não podem ser contados. Pegue o DVD na locadora e você não vai se arrepender. Lee conseguiu o que parecia impossível: contar uma história entre 400 mil histórias possíveis.

A quarta e última virada do filme revela, é claro, uma história de amor. Afinal, estamos em Woodstock. Um amor inimaginável, duro, seco, sem paz e sem flores. Amor que, de tão árido, sequer se insinua ao longo das duas horas de projeção. Definitivamente, Aconteceu em Woodstock não é um filme sobre Woodstock.

6 comentários:

  1. (de novo)
    Confortante saber que a noite abriga mais pensamentos que os meus próprios!
    Estou convencida e vou pegar o filme 'já'!
    Também fico feliz em saber que não faço parte dos ''excluídos entre 20 e 30 anos'', e longe disso!

    Obrigada pela dica, Sérgio, e pelo blog, claro!=)

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  2. Que maravilha isso, Maria Eliza: "saber que a noite abriga mais pensamentos que os meus próprios!" Pois é, também é bom para mim saber disso. A questão das gerações foi uma pequena provocação, e é claro que você não está ali. Tomara que você consiga ver o filme.Acho que vai gostar. Obrigado. Beijo.

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  3. Serjão, que resenha - será que o texto não é bem mais que isso?, me pergunto - simplesmente irretocável! Sabe quem mais ignorou solenemente este filme? A imprensa brasileira! Eu, assíduo leitor dela (até quando?), não sabia das potenciais descobertas ali, que agora você nos revela neste blog indispensável. Sobre o lance das gerações: tá certo, quando ouvi falar do filme - mas, como eu disse, sem muita profundidade - imaginei mais uma daquelas "ficções documentais", permeadas de depoimentos de velhos hippies e contando pela enésima vez a mesma história. Legal isso de "uma entre as 400 mil possíveis"! Isso é narrativa. Isso é literatura. Isso é cinema. Abraço.

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  4. Como é bom ler uma resenha com um texto tão bem escrito. Como o leitor abaixo bem comentou simplesmente irretocável! Resenhas assim são raras nos periódicos brasileiros. Impossível não ficar na vontade de ler textos novos todos os dias. A respeito do filme compartilho as mesmas impressões. Fazer filmes grandiosos como O "Tigre e o Dragão", blockbusters como "Hulk" e depois de tudo isso conseguir fazer um filme que realmente tem o sabor dos "grandes" filmes independentes americanos no mínimo supreende. Abraço!

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  5. Eu sabia, Christian, que o comentário sobre as gerações iria pegar. Tive a idéia quando perguntei para o Baggio se ele tinha visto o filme e senti na reação dele o quanto Woodstock havia se perdido entre as gerações que vieram depois da minha. Daí a provocação, que até acho tem um pouco de verdade. Nem eu imaginava tanto quando fui ver o filme - e foi muito, muito mais do que eu esperava. Uma história e tanto, que é, enfim, o que gosto no cinema. Mais uma vez, obrigado, Christian pela atenção e o estímulo. Grande abraço.

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  6. Camilo, sei que você um cara que gosta, vê e acompanha cinema. Por essas e outras os seus comentários são sempre importantes e bem-vindos. Obrigado, como disse ao Christian, pelo estímulo e a leitura atenta. O Ang Lee realmente surpreendeu, mais uma vez, pela versatilidade - e o talento, é claro. Abraço.

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