quarta-feira, 7 de abril de 2010

EU SEI O QUE VOCÊ NÃO FEZ NO VERÃO PASSADO


É quase certo que você não foi para Nova Iorque. Se esteve lá, talvez até tenha passado em frente (ou próximo) de um prédio no East Village, esquina da Broadway com a 4th Street, onde até 2006 funcionou a Tower Records, uma das maiores lojas de discos da cidade. Ainda assim, provavelmente, não participou da ação mais criativa dos ativistas da arte da NO LONGER EMPTYRevitalising Space: Unlocking Creativity.


A NLE é uma organização sem fins lucrativos que trabalha para recriar espaços urbanos que, como se sabe, também são espaços sociais. O objetivo desta ONG do bem é voltar a reunir gente em torno de exposições montadas em galpões, becos, galerias, edifícios que já foram lojas, hotéis etc - lugares abandonados que ainda fazem parte da paisagem da cidade e da memória das pessoas.



No início do ano, a NLE tomou conta de uma das esquinas mais valorizadas de Manhattan para “reviver” o ambiente da Tower com a instalação multimídia NEVER CAN SAY GOODBYE. Os cinco andares da antiga loja foram novamente ocupados com estantes e prateleiras de vinil, CDs; cassetes; torres para ouvir música; posters; capas de discos nas paredes; pocket shows e lançamentos. Até ex-funcionários da loja participaram do evento “atendendo” aos seus ex-clientes.


Não era a Tower do Village. Só o espaço era o mesmo, rebatizado NEVER RECORDS; modificado, ressignificado pelas diversas expressões e instalações dos artistas reunidos pela NO LONGER EMPTY para a ação. O evento, gratuito, contou a história da loja (e do espaço), trouxe shows com bandas ultraindies da sempre interessante cena novaiorquina, painéis, palestras com músicos, produtores e executivos das grandes gravadoras. Todos para se reunir e falar sobre as mudanças na indústria da música trazidas pela internet e de como a tecnologia tem modificado as formas de fazer arte.



A proposta da NLE, ao tomar e revitalizar espaços urbanos praticamente abandonados, por meio da arte, é a discussão de temas que vão da economia à antropologia, passando pela política, o engajamento, a cidadania e o protagonismo social. Mas o gesto é mais amplo, criativo e eficiente - pelo impacto do que aconteceu na antiga Tower, pelo número de pessoas que reuniu e pelo que ganhou em mídia espontânea, entre outras repercussões.


A cada nova ação, a ONG convida seus diversos públicos a pensar nas manifestações da cultura; no crescimento das cidades que já são grandes demais; no individualismo sem sentido; nos avanços rápidos da tecnologia; na incomunicabilidade e na memória minimamente necessária para a nossa sobrevivência. Já é muito para começar a perceber a distopia caótica e preocupante em que se transformou a vida em comunidade em Nova Iorque ou aqui.



De qualquer forma, é reconfortante saber que aquele prédio abandonado em uma esquina de Manhattan, que estava sediando eventos temporários e irrelevantes como mercados de pulgas e festas de Halloween, que não faziam justiça à sua grandeza e relevância, foi a Never Records durante quase um mês, entre janeiro e fevereiro desse ano. Foi o tempo necessário para lembrar daquele disco do R.E.M. lançado na loja com um pocket show relâmpago da banda. A Tower foi, durante os 80 e 90, um dos pontos de reunião da enorme comunidade indie da cidade. Foi o tempo de lembrar dos inúmeros astros do rock e do pop que costumavam freqüentar o local para comprar discos. O jazz e a música clássica estavam lá, no mesmo segundo andar, bem como as generosas prateleiras do quarto andar que apresentaram a world music aos americanos e atendiam aos milhares de imigrantes que vinham ouvir e comprar a sua música para se sentir mais perto de casa.



A NO LONGER EMPTY provou, mais uma vez, que a arte pode ser radical sem afastar o público (um dos maiores estigmas das vanguardas). Pelo contrário, NEVER CAN SAY GOODBYE e a NEVER RECORDS percorreram e aniquilaram as armadilhas da lógica e dos sentidos com uma mostra multimídia contemporânea, instalações e, quem diria, um enorme happening – que muitos consideravam coisa do passado. Parece ironia, mas é conceito, idéia, mobilização e realização – talvez a verdadeira transgressão. Sobretudo, uma grande idéia.


A Tower Records surgiu em Sacramento, na Califórnia, em 1960,quando Russ Solomon começou a vender discos na farmácia do seu pai, no mesmo prédio onde ficava o Tower Theatre. Com o crescimento dos mercados do rock, do pop e do soul, o negócio só cresceu. Durante as décadas de 70, 80 e 90, a Tower tinha lojas nas principais cidades americanas, no Canadá, Reino Unido, Argentina, Japão, Israel, Hong Kong e Cidade do México, entre outras praças. Na transição para o século XXI, começou a sentir os efeitos de um mundo que se transformou rápido demais e que foi engolindo prateleira a prateleira das lojas, primeiro as de discos, cassetes e fitas VHS, depois as de CDs e DVDs. A Tower capitulou em 2006.


Fico imaginando algo parecido por aqui, revivendo pela última vez o espaço da Bruneti Discos da Rua XV, da Wings na Ébano Pereira, dos mitológicos dois andares da Savarin da Dr. Murici ou da 801 Discos, primeiro reduto indie e world music em Curitiba. Lugares que fizeram parte de uma cidade que não existe mais e que só sobrevivem na memória de pessoas como eu.


Paciência. Vida que segue. A propósito, também não estive em Nova Iorque nesse verão, mas conheci a Tower londrina em Piccadilly Circus, enorme, com os mesmos cinco andares do Village. Não consigo imaginar, como aconteceu muitas vezes, aquele templo coberto de cartazes colados por ex-frequentadores com a frase: It's The End Of The World As We Know It.