sábado, 9 de janeiro de 2010

LAPIRO E A LUZ


Esse tipo de fotografia tem sido tirada desde os anos 80 pela força aérea norte-americana para o Programa de Defesa Metereológica por Satélite. Popularizada em palestras, cursos de pós-graduação, redes de e-mail na internet, a imagem assume significações diversas, dando conta desde os efeitos da globalização até a divisão histórica entre os eixos norte e sul. Na maioria dos cursos e palestras em que o meio ambiente, o social e o econômico são o objeto (juntos ou separados), a imagem de um mundo à meia-luz tem servido para comprovar desequilíbrio, desperdício, pobreza, miséria e a necessidade de iluminar mais o bloco de países abaixo da linha do Equador, independente do objeto. Os e-mails que recebi com a foto falavam de como o mundo é lindo visto de cima e à noite, geralmente acompanhados daqueles emoticons bobos e irresponsáveis.

A fotografia noturna (eu não diria o mundo) é realmente bonita tirada de um satélite em órbita posicionado estratégicamente acima de nós para estudos climáticos. Ela mostra também, de forma inequívoca, a desigualdade estarrecedora entre ricos e pobres. A metáfora é poderosa e nada sutil: onde tem luz tem progresso, desenvolvimento e riqueza. Olhe a foto de novo.

As luzes mais intensas estão no leste dos Estados Unidos e no sul do Canadá, na Europa ocidental até a Rússia européia e no Japão. O grupo de países mais ricos e influentes está todo aí. Os chamados "emergentes" aparecem em segundo lugar, com luzes ligeiramente mais fracas. É o caso do sudeste do Brasil (e só o sudeste, com as luzes diminuindo até a faixa litorânea do Nordeste), da Índia, do Oriente Médio, dos "tigres asiáticos" e da China ao lado do Pacífico. Observe que algumas áreas não têm como ter luz, ainda que estejam entre os "iluminados".


O Canadá, um dos maiores países do mundo e dos mais desenvolvidos, tem 2/3 do seu território coberto por florestas inóspitas e geladas de abril a novembro, onde é quase impossível ter vida. O Canadá só existe ao sul, onde tem luz, próximo da fronteira com os Estados Unidos. As zonas escuras da Rússia, China e Austrália também são imensas áreas desérticas e igualmente geladas (exceto o grande deserto australiano). As áreas mais escuras no norte e centro-oeste do Brasil correspondem à Amazônia e ao Pantanal. Volte para a foto mais uma vez e responda: e a África ?

Uma pequena área levemente iluminada no extremo norte sofre a influência da civilização que surgiu em torno do Mediterrâneo - parte do Marrocos, Argélia e Tunísia. Luzes muito tênues circundam o Golfo da Guiné, onde estão Senegal, Costa do Marfim, Gana, Togo, Benin, Nigéria, Camarões, Congo e Gabão. Luzes mais fortes na África do Sul, principalmente em torno da capital Pretória. No mais, o continente africano é escuridão e breu, atraso e pobreza, de acordo com a metáfora.

Em algum lugar no meio desse escuro, Lapiro de M'Banga está preso há quase dois anos por "ofender o governo" com uma música, "Constitution Constipée". Lapiro - Pierre Roger Lambo Sandjo - é camaronês e fez sua fama na concorrida cena musical de seu país a partir do final dos 70, quase sempre com letras engajadas, políticas e abertas ao confronto direto com o poder. O que, em tese, poderia ser chato é uma música vibrante, bem humorada e dançante, que mistura pop, rock, rap e o soukou (a "rumba congolesa") à makossa e ao bikutsi, as duas maiores contribuições de Camarões ao pop africano. Para quem não sabe, além de Samuel Eto'o e Roger Mylla, Camarões deu ao mundo músicos como Manu Dibango, Francis Bebey, Richard Bona, Henri Dikongué, Sally Nyollo (que pertencia ao Zap Mama), Les Têtes Bruelées, Sam Fan Thomas e Guy Lobe, entre muitos outros. Lembre que "Wanna Be Startin' Somethin", faixa de abertura de Thriller (82), um dos discos mais vendidos na história do pop, faz referência direta à makossa, a Manu Dibango e à música de Camarões. Soul Makossa, 10 anos antes de Michael Jackson, foi sucesso no Brasil e no mundo - a ponto de fazer parte de uma novela da Globo no horário nobre.


A história envolvendo a prisão de Lapiro é absurda, mas nada incomum na África. Ele sempre acreditou que sua música deveria combater a corrupção e o abuso de poder, e escreveu "Constitution Constipée" em 2008, quando foi aprovada uma emenda constituticional que deu total imunidade ao presidente Paul Byia, livrando-o de qualquer processo enquanto estivesse à frente do governo. Ao mesmo tempo, a emenda deu a Byia a possibilidade de reeleger-se infinitamente. A música de Lapiro, segundo o ministro das finanças, teria incitado agricultores, que em sinal de protesto teriam destruído plantações de bananas com prejuízo estimado em astronômicos 300 mil euros ao país. A quantia foi instituída como fiança para que Lapiro pudesse responder ao processo em liberdade. Paul Byia está há 26 anos no poder, apesar da "constituição obstruída".

Lapiro foi condenado a três anos de prisão em um julgamento sumário e fraudulento. Hoje divide uma cela com 50 pessoas, sem as mínimas condições de higiene, sem nenhum tipo de assistência (principalmente de saúde) e tem de se alimentar com a péssima comida servida na prisão. Seus bens foram confiscados e sua família passa necessidade. Até agora, todos os recursos foram negados. Enquanto isso, o presidente e sua "comitiva" de 60 pessoas passam férias na França gastando 800 mil euros por temporada, segundo organismos internacionais ligados aos Direitos Humanos que atuam em Camarões, sob severa vigilância do governo.

Em setembro do ano passado,
Lapiro de M'Banga ganhou o "Freedom To Create", prêmio atribuído pela Freemuse - Freedom of Musical Expression - a músicos que lutam pela liberdade de expressão. Lapiro foi indicado e defendido pelo maestro Daniel Barenboim; pelo advogado Geoffrey Robertson, que trabalha em todo o mundo pelos Direitos Humanos; pelo fundador da Time Out, Tony Elliot; pelo cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf e por Bianca Jagger, ativista nicaraguense que já foi casada com Mick Jagger. A família de Lapiro recebeu da Freemuse 25 mil dólares.

Agora, músicos africanos acabam de lançar um disco em apoio a Lapiro: Free Libérons Lapiro. A causa é mais do que justa e a compilação é ótima. Baixe o disco aqui e assine uma lista pela libertação do músico. A última faixa é a inacreditável "Constitution Constipée", um típico soukou com o rap certeiro e militante de Lapiro, que causou a sua prisão.


Lapiro de M'Banga tem sorte de ainda estar vivo. Na África, muitos "desentendimentos" entre músicos e governantes corruptos e sinistros são resolvidos com simples assassinatos. Na Argélia, os militares que sempre estão no poder já silenciaram várias vozes do rai. Na Cabília, região que tenta a independência do governo argelino, que fala outra língua e pertence a cultura berbere, os crimes são comuns. O maior nome da música da Cabília, Matoub Lounès, foi morto em 1998 em uma emboscada armada pelos genarais de Argel. A brilhante cantora e compositora berbere Djurdjura vive exilada, grava e lança seus discos escondida em algum lugar da França, jurada de morte pelo governo argelino e por seus próprios irmãos - por ser mulher, cantar e expor ao mundo o atraso e a opressão de que são vítimas as mulheres na Cabília e na Argélia. Fela Kuti escapou de dois atentados na Nigéria; em um deles morreu sua mãe de 79 anos. Na Etiópia dos anos 70 e 80, a ditadura comunista de Mengistu perseguiu quase todos os músicos que faziam um dos sons mais exuberantes do moderno pop africano, só porque não tinham a ver, na visão dos militares, com a tradição da música etíope. Música degenerada, na visão do ditador (a mesma de Hitler e Stalin), que apresentava o funk de James Brown aos africanos.

A melhor música do planeta vive em um mundo escuro, onde uma seleção de futebol foi metralhada em uma área de conflito (Cabinda - Angola), que nem uma guerra civil conseguiu resolver em 30 anos de conflito. Os excessos continuam na Nigéria, Argélia, Camarões, Congo, Somália, Sudão, Líbia, Ruanda, Uganda, Burundi, Etiópia (e a Eritréia), Chade e Zimbábue, sem contar os problemas que ainda enfrenta a África do Sul, sede da próxima Copa do Mundo daqui a seis meses.

No mundo iluminado, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, está vivo e mora em Paris. Baby Doc assumiu o poder no Haiti depois da morte de seu pai, François Duvalier, o Papa Doc. Juntos, pai e filho dominaram o Haiti por 31 anos e não dotaram o país de uma infraestrutura básica de governo, capaz de construir instituiçoes públicas sólidas que poderiam dar ajuda à tragédia provocada pelo terremoto que, na prática, destruiu o país. Pai e filho, usando de violência, repressão, censura e corrupção, roubaram toda a força do Haiti e só engordaram suas contas bancárias. A mesma coisa tem acontecido na África desde que os colonizadores europeus entregaram o poder aos africanos que, em muitos casos, se revelaram mais cruéis que os seus opressores.


Não por acaso, o Haiti também está no escuro, como Camarões e quase toda a África. Baixe o disco de Lapiro, tente livrá-lo da prisão e de um mundo atrasado que não pode mais existir. A idéia é tentar iluminar o mundo contra a barbárie e o terror na África ou em qualquer lugar. Uma foto de satélite americana não pode falar por nós depois de milênios tentando construir uma civilização.